Quando se fala em polícia, vem-nos à cabeça instantaneamente a idéia de órgão repressor. Essa concepção equivocada que se instalou desde a tenra idade do indivíduo tem dificultado, ao longo dos anos, a relação polícia versus cidadão.
O perfil do policial, ou em linguagem mais técnica, a sua biotipologia, aliada ao fato do distanciamento que perdurou da milícia, num passado bem recente, da comunidade gerou tais perplexidades.
Felizmente, a Constituição Federal de 1988, denominada de "Constituição Cidadã" , eliminou a possibilidade da manutenção desse laconismo, que só prejuízos traziam à sociedade, incluindo a polícia no programa de segurança pública do Estado, relacionando suas diversas modalidades e destacando suas competências.
Isso não quer dizer que as Constituições anteriores não houvessem tratado do tema. A questão se circunscreve unicamente ao fato do destaque e do funcionamento do organismo policial.
A propósito disso, vale lembrar que a palavra polícia, segundo o renomado processualista Tourinho Filho deriva "do grego politéia - de pólis (cidade) e significou, a princípio, o ordenamento jurídico do Estado, governo da cidade e, até mesmo, a arte de governar". (In Processo Penal, vol. I, p. 167, Saraiva).
Para o mesmo mestre "a polícia, com o sentido que hoje se lhe empresta - órgão do Estado incumbido de manter a ordem e a tranqüilidade públicas - surgiu ao que parece, na Velha Roma". (ob. Cit., p. 167).
A polícia, em nossos dias, deve suscitar a idéia de segurança pública: dever do Estado, direito e responsabilidade de todos posto haver sido criada para a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio, da tranqüilidade e paz interna, tal como previsto pelo art. 144, da nossa Carta de Princípios.
A seu turno, a expressão segurança pública tem conotação abrangente e envolve obrigatoriamente o conceito de segurança nacional, o qual exige de todos os cidadãos a colaboração no combate à criminalidade, à defesa interna e externa e aos recursos logísticos e materiais para consecução dos seus objetivos.
Não há mais lugar para o policial veterano que age apostando unicamente em sua intuição ou no faro do investigador de quarteirão que conhecia por nome, por traços fisionômicos, por endereço e na ponta dos dedos os marginais da cidade.
Os tempos mudaram. O mundo evoluiu. A cidade se expandiu. Novos bairros surgiram. Multiplicaram-se as moradias. Desordenaram-se as favelas e modificaram-se os hábitos urbanos. Mudaram as pessoas, sofisticaram-se as técnicas de investigação e a proteiforme ação dos celerados. Estamos vivendo no mundo da informática, na era da cibernética, onde o computador substituiu a velha máquina de datilografia impondo ao homem novos desafios, ao mesmo tempo em que tornou-lhe escravo dela fazendo com que adotasse a linguagem da informática sempre recheada de neologismos e de estrangeirismos.
A insegurança hoje não é só em relação à criminalidade. O leque de informações no campo da investigação criminal saturou o conhecimento humano, sobretudo após a aplicação da informática no âmbito do direito criminal. Contudo, à medida que evoluem as técnicas investigatórias, aperfeiçoam-se paradoxalmente os projetos criminosos, os subterfúgios ignominiosos da mente corrompida do criminoso, causando uma relação anfibológica entre forças antagônicas que se deslocam em direções contrárias.
Essa ambivalência fomenta a análise dos fatos e da prova por pessoas capacitadas e versadas na verificação de exame pericial de certos elementos vinculados à infração penal, tal como em conhecimentos essenciais do direito processual e constitucional para poder agir incontinenti contra o indivíduo que seja surpreendido no instante do cometimento do crime, dar-lhe voz de prisão, saber arrecadar os instrumentos utilizados na prática criminosa, garantir-lhe os direitos constitucionais e conduzi-lo ao distrito policial mais próximo para autuação, onde cessará ocasionalmente, no caso do policial militar, a sua missão.
A formação do policial militar de nossos dias passa por essa vertente. O enorme avanço tecnológico legado às civilizações pela comunidade científica do século vinte impõe uma mudança de estratégia no treinamento e atuação do policial militar, a fim de qualificá-lo para o exercício da missão constitucional para a qual se encontra investido.
E isto porque é vasta a competência da polícia militar no plano da segurança pública, indo desde o serviço de policiamento preventivo e ostensivo até os atos de efetiva repressão para debelar a ação criminosa.
Em suma, quando medidas profiláticas não surtem efeito e o trabalho preventivo (polícia administrativa) da força militar revela-se ineficaz, deflagra-se a repressão mediante atos de investigação presididos pela polícia judiciária.
Aqui inicia-se, não raras vezes, o contato do agente investigador com o Poder Judiciário, numa parceria orientada por interesses comuns que é a elucidação do fato criminoso com todas as circunstâncias e a descoberta da autoria.
Todos os esforços devem ser envidados para o alcance desses objetivos, embora nesse contexto não seja conferida à autoridade policial militar ou a seus agentes a atribuição de instaurar inquérito policial para apuração de ilícito penal comum (art. 4.º, do CPP).
Tem, no entanto, o policial militar o dever de levar ao conhecimento da polícia civil a ocorrência criminal, colaborando quer nas diligências para captura do delinqüente ou para a apreensão de algum instrumento relacionado com a conduta penal, quer comparecendo à presença da autoridade processante para prestar depoimento a respeito do fato criminalizado.
Esse desiderato somente será alcançado, repita-se, se houver a conjugação dessas instituições policiais que, não obstante possuam forma organizacional diferentes, buscam o mesmo fim, que é a prevenção e a repressão dos delitos.
Nessa missão institucional, ambas prestam relevantes serviços à sociedade e, em especial mercê, auxiliam o Poder Judiciário no seu papel de administrar a Justiça.
Para isso, exige-se do policial militar cuidados concernentes ao seu preparo pessoal para aprender a relacionar-se com as autoridades do poder judiciário, conhecendo a linguagem forense e o trato no cotidiano hierárquico da vida desse órgão.
No Estado Democrático de Direito é indispensável que haja um controle dos órgãos da segurança pública para contenção dos excessos cometidos diariamente pelas autoridades, notadamente por aquelas responsáveis pela polícia de repressão. Esse controle, em nosso País, é exercido precipuamente pelo Poder Judiciário, quando outros órgãos, v.g., o Ministério Público não conseguem fazê-lo no âmbito administrativo.
É necessário que assim ocorra, a fim de que o policial não extrapole a sua autoridade, por excesso ou desvio de poder, e fique sujeito às sanções penais por abuso de autoridade, como ordinariamente acontece, suscitando incompreensões de tais setores, desestímulo do policial punido ou do órgão ao qual pertence na continuidade ao combate da criminalidade e até crise entre as instituições envolvidas, o que resulta maléfico para a assepsia do relacionamento cordato e do relevante trabalho que os agentes dessas corporações desenvolvem.
Fala-se muito, na atualidade, em fusão ou em unificação das polícias civil e militar. Inúmeros artigos já foram escritos sobre o assunto, ora defendendo essas teses, ora combatendo-as. O certo é que há todo um histórico, toda uma realidade sócio-política sobre a polícia militar brasileira que precisa ser conhecida e respeitada antes que se pretenda simplesmente extinguí-la, fundi-la ou unificá-la para acudir a sanha daqueles que, integrantes da polícia civil ou perseguidores da sua hegemonia ou simpatizantes dessa corporação, perceberam a perda do prestígio social por não atuarem ostensivamente e uniformizados na defesa interna.
Esse complexo de inferiorização fomentou uma profunda crise de identidade da polícia civil e reacendeu a tese de reunir as duas corporações em uma só, amalgamando-se seus efetivos, sob comando único.
Pode-se dizer que a polícia militar também sofre de crise existencial - não por falta de conhecimento das suas atribuições -, mas por não contar com a escola ideal para formação do seu pessoal, pela ausência de folha curricular que possa preparar solidamente seus componentes, pela insuficiência ou inexistência de instrumental de pesquisa, bélico e congêneres que possa assegurar-lhe a proteção dos seus membros e da sociedade contra o inimigo interno, etc.
A estrutura orgânica da polícia militar e da polícia civil são diversas. Os elementos orientadores da disciplina e da hierarquia são também diferentes. Os poderes exercidos pelas autoridades dessas corporações não coincidem. Todos esses fatores levam a que, de ambas as partes, hajam resistências à fusão ou unificação das duas polícias.
Como bom patriota e como estudioso do direito, prefiro a adoção do modelo atualmente existente no País para a defesa da segurança pública, pois nem toda aliança implica no aperfeiçoamento do órgão coligado e, em matéria de Brasil, já vi muitas vezes operarem-se modificações nas instituições apenas para mascarar uma realidade que os prosélitos dessa concepção insistem em defender, muitas vezes sem qualquer convicção, obstinados pela formação de organismo espúrio, degenerado e deformado face a relação incestuosa da qual derivou.
Depoimento do cap Vicente Albino Filho:
Uma sociedade que se pretende democrática deve almejar atender, minimamente, os principais anseios da sua população: distribuição de renda, serviços públicos de qualidade na saúde, educação e segurança pública. Demandas básicas de qualquer povo, principalmente dos menos abastados, desprovidos de recursos capazes de suprir as deficiências do Estado nessas áreas. Embora existam numerosos estudos a respeito das organizações Policiais, pouco se sabe, ainda, sobre a natureza dos atributos e das relações envolvidas na eficácia de organizações que prestam serviços públicos. Em razão desta constatação, as corporações policiais, no Brasil, não constituem raridades e projetam-se em ascendentes práticas de violência e criminalidade urbanas. Os problemas relacionados à segurança pública vêm ganhando dimensões epidêmicas no Brasil, onde, pessoas e instituições dedicadas a estudá-los seriamente, são poucas ainda, assim como são muito precários os dados disponíveis para subsidiar análises precisas e políticas eficazes na diminuição do crime e da violência. A obsessão social pelo crime é traduzida na vida cotidiana, onde até nos momentos de lazer, reservamos grande parte do tempo para assistirmos aos filmes de ação e às matérias relacionadas à violência e criminalidade freqüentemente abordadas nos principais telejornais – em horário nobre(Eloá, Cravinhos, etc). Neste cenário, um dos temas mais avaliados por estudiosos da área de segurança, formuladores de políticas públicas, autoridades de governo, acadêmicos especialistas e pelos próprios policiais é a necessidade de profissionalizar a polícia brasileira como um recurso para capacitá-la, visando um desempenho mais eficiente, responsável e efetivo na realização de sua missão. Notadamente, sabe-se que a questão da qualificação não resolverá o problema da segurança da população. A questão é mais complexa do que se imagina, tendo em vista que ao levar em consideração as palavras do grande sociólogo Emile Durkheim quando afirmou no início do século passado que: “o crime é um fato normal em qualquer sociedade”. Apesar de óbvia, a afirmação costuma chocar as pessoas que imaginam ser o papel da polícia acabar com o crime. Entende-se, portanto, que se a polícia auxiliasse na redução drástica dos roubos diários nas grandes metrópoles, e hoje, também nas pequenas cidades, ainda assim, centenas de pessoas seriam vítimas todo dia. Vítimas sempre existirão independentemente da eficiência da polícia, o que se traduz na responsabilidade das pessoas de reduzir as possibilidades de sofrerem algum ato ilícito. Se os aparatos de polícia e justiça não conseguem controlar a criminalidade e sobram pressões de outras condições sociais desfavoráveis, o combate à violência se torna prioridade nas preocupações da sociedade e o mercado da segurança se torna especialmente atrativo para exploração comercial, aqui como em qualquer lugar do mundo.
"A repressão pode gerar frustrações e maus incontestáveis, mas a liberdade sempre gerará o conflito". (anônimo)